Iniciativa inédita do CNJ promove diálogo entre o Poder Judiciário e as juventudes
Em uma iniciativa pioneira, adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas em Minas Gerais e no Paraná gravam em áudio cartas escritas por jovens de todo o País que se encontram em situação similar. O projeto, coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), integra uma publicação sobre protagonismo juvenil que será lançada em breve.
Histórias e emoções
Em 2023, 453 cartas foram escritas por adolescentes em cumprimento de medidas de internação e semiliberdade em todo o Brasil. Os documentos foram elaborados com apoio das gestões estaduais e distrital do Sistema Socioeducativo, por meio do Programa Fazendo Justiça do CNJ, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
As cartas foram entregues a magistrados representantes das Varas da Infância e Juventude durante os “Encontros Regionais da Justiça Juvenil e do Sistema Socioeducativo”, realizados em julho de 2023, em Brasília (DF), na sede do CNJ. O evento foi coordenado pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF).

Projeto do CNJ transforma em áudio cartas escritas por adolescentes em cumprimento de medidas de internação e semiliberdade em todo o Brasil (Crédito: TJMG / Divulgação)
Esses encontros regionais fazem parte de uma estratégia nacional mais ampla de fortalecimento do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), que mobiliza gestores, profissionais e representantes de todas as regiões do País para discutir e qualificar o Atendimento Socioeducativo.
Nos encontros do CNJ, o objetivo foi construir estratégias para qualificar a atuação de magistrados com competência na matéria infracional, reconhecendo adolescentes como sujeitos de direitos ativos e autônomos. As cartas pautaram importantes debates sobre a Política Socioeducativa do País e sinalizaram a urgência de criar canais de escuta entre Poder Judiciário e adolescentes.
Experiências similares
Diante do ineditismo da ação, o CNJ está elaborando uma publicação que abarcará ferramentas e mecanismos relacionados ao protagonismo juvenil, utilizando como base principal os conteúdos das cartas. Alguns trechos foram selecionados para serem lidos em voz alta por adolescentes que atualmente cumprem medida socioeducativa, com os áudios sendo gravados para inserção na publicação por meio de QR Codes.
As unidades socioeducativas de Minas Gerais e do Paraná foram selecionadas por já desenvolverem projetos de áudio e/ou vídeo. Em Minas, um Centro Socioeducativo e uma Casa de Semiliberdade que atendem adolescentes do gênero feminino participaram da ação, com apoio do Estúdio do Centro de Referência das Juventudes (CRJ), equipamento público da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH).
A identidade das adolescentes autoras das cartas e das leitoras foi preservada, sendo utilizados nomes fictícios.
Identificação e emoção
A ação proporcionou momentos de emoção para as adolescentes responsáveis pelas leituras, que disseram ter se identificado profundamente com as experiências relatadas nas cartas.

As jovens responsáveis pelas leituras disseram ter se identificado com os conteúdos narrados (Crédito: TJMG / Divulgação)
A adolescente Júlia, em cumprimento de medida de internação, relatou como foi participar da gravação: “Para mim, ler a carta foi muito difícil. Eu me identifiquei muito com a moça da carta, porque tudo que ela estava falando, eu já passei, já aconteceu comigo. Tudo que ela falou me identificou bastante – a vida do crime, a adrenalina.”
Amanda, que também cumpre medida socioeducativa de internação, falou sobre sua participação: “Eu fiquei um pouco angustiada sobre as histórias delas. Mas cada uma tem sua história. Eu escrevi uma carta [para o juiz]. Se Deus quiser, espero que seja mandada.”
A partir da leitura das cartas, Amanda decidiu também escrever para o juiz da Vara de Execução. “Eu pensei que também poderia ter uma oportunidade de escrever uma carta dessa para chegar no juiz. Agora eu fiz isso, tomei providência”, disse.
Júlia também se motivou: “Também escrevi em horário de aula. A professora deixou um horário liberado. Aproveitei para escrever uma carta para o doutor, para ele me dar uma atenção, ver como está meu processo.”
Acompanhamento técnico e reflexões
O processo de preparação, leitura e gravação das cartas foi acompanhado por equipes técnicas das unidades socioeducativas, que acolheram e dialogaram com as adolescentes durante todo o processo.
A técnica do Centro Socioeducativo Keila Lucindo conduziu a preparação por meio de oficinas.

Para a iniciativa inédita do CNJ foram escolhidas jovens do Sistema Socioeducativo de Minas Gerais e do Paraná (Crédito: TJMG / Divulgação)
“A primeira oficina foi um momento de muita emoção, houve muita identificação com as histórias contadas nas cartas. Algumas adolescentes choraram, ficaram muito emocionadas. Depois, tivemos outros momentos de oficina, com leitura na área externa da unidade e café com leitura. Com o projeto, elas sentiram o desejo de também escrever cartas para o Judiciário. Fiquei pensando como é diferente quando colocamos parte da nossa história no papel. Como escrever faz toda diferença, muda até a forma de reflexão”, afirmou
A diretora-geral da Casa de Semiliberdade, Martha Florença, destacou: “Foi muito interessante participar da gravação das cartas. Fomos ao Centro de Referência das Juventudes gravar no estúdio. Foi um momento importante das adolescentes se apropriarem daquele espaço profissional. Elas ficaram inicialmente tímidas, mas muito empolgadas para continuar esse processo de gravação de poesia e música que compõem. Foi muito emocionante, porque as cartas não eram delas, mas tinham muito a ver com suas histórias. Uma das cartas é de uma menina trans, e quem leu foi uma menina trans. Foi muito lindo vê-las tendo voz a partir disso.”
Esperança e novas narrativas
O juiz auxiliar da Vara Infracional da Infância e da Juventude da Comarca de Belo Horizonte Afrânio José Fonseca Nardy, membro do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Socioeducativo (GMF) e da Coordenadoria da Infância e da Juventude (Coinj) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, acompanhou a ação e prestou homenagem ao juiz auxiliar da Presidência do CNJ Edinaldo César Santos Júnior, falecido recentemente.
O magistrado coordenava a Área Socioeducativa junto ao Programa Fazendo Justiça, deixando importante legado para a socioeducação e garantia dos direitos de crianças e adolescentes.

O juiz Afrânio Nardy ressaltou que as atividades de autoexpressão as quais constroem o fio dessas narrativas são extremamente importantes na área da Socioeducação (Crédito: Euler Junior / TJMG)
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“Um amigo que nos deixou recentemente. Ele me ensinou que, para trabalhar com as juventudes, é preciso ‘esperançar’. E para ‘esperançar’ é necessário, antes de mais nada, escutar histórias, conectar-se com as vivências, experiências, sonhos e projetos, mas também com os sofrimentos, dificuldades e violações de direitos que nossos adolescentes vivenciam”, declarou o juiz Afrânio Nardy.
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Para ele, as atividades de autoexpressão que constroem o fio dessas narrativas são extremamente importantes na área da Socioeducação, tanto para os adolescentes quanto para os próprios magistrados.
“Tentamos nos conectar com essas histórias, deixando sempre a porta aberta para que novas trajetórias sejam construídas. Por isso, esse projeto do CNJ é tão interessante: são histórias recontadas por outras adolescentes, que tecem nessas narrativas o fio de suas próprias histórias. Ao fazer essa tessitura, nos apresentam a possibilidade de contar novas histórias”, disse.
O magistrado concluiu citando o indígena, ambientalista, filósofo e escritor Ailton Krenak, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).
“Essas histórias são valiosíssimas, pois, como diz Ailton Krenak, se queremos adiar o final do mundo, é sempre necessário deixar a porta aberta para que novas histórias sejam contadas. Esse é o grande desafio de quem atua na Socioeducação: deixar o futuro aberto para esses jovens, para que novas e belas histórias, às vezes difíceis, às vezes duras, mas cheias de esperança, possam ser contadas”, afirmou o juiz Afrânio Nardy.
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Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG